É antiga a consciência teórica de que a democracia é projeto e valor “difícil” na vida pública brasileira. A prática a comprova. No período pós 1930 (junção entre modelo republicano e aceleração da modernização), em quase cem anos constatamos que em metade dele vigorou formas autoritárias (plena – 1937/1945;1964/1984; de transição -1930-1937; 1984-1989; e semi-autoritária -2016/2022). Mas, se o moderno em política remete ao Estado Democrático de Direito (soberania popular, Constituição, direitos, divisão de poderes, eleições) percebe-se quão difícil e oscilante é a trajetória da democracia no Brasil.
Recentemente a questão autoritarismo retorna ao debate em função da ascensão de um projeto autoritário e de regressão democrática, com expressivo enraizamento social – a Nova Direita – campo político que orbita entre o bolsonarismo, o ultraliberalismo econômico, o conservadorismo moral e a renitente usurpação da soberania popular pelo protagonismo militar. Remonta, em sua narrativa, ao golpe de 1964, colocando o período democrático.
Com 1964 em um ponto e 2026-2018 em outro, os dois ciclos autoritários comungam o quê? Diferenciam-se no quê? No contexto, objetivos e os instrumentos.Em termos de contexto, o golpe civil-militar de 1964 opôs-se ao projeto nacional-desenvolvimentista que coordenou transformações sociopolíticas profundas via industrialização, minando o poder das velhas oligarquias rurais (primário-exportadoras, como hoje o são o setor de commodities) e rompendo as “desvantagens reiterativas” da inserção da economia nacional aos ditames do mercado internacional. No âmbito da Guerra Fria o combate ao desenvolvimentismo nacionalista operou através de sua identificação ao comunismo. Curiosas são nesse cenário as contradições do projeto militar. Em sua ação, manteve, na economia o planejamento e a estratégia desenvolvimentista (que politicamente condenava), destituindo-os da preocupação com o progresso social geral e da elevação da qualidade de vida da população brasileira. O resultado dessa ressignificação modificou os objetivos pretendidos pela ditadura, pois converteu a luta contra a pobreza, denunciada pela teoria do subdesenvolvimento como incapacidade de produzir, em aumento da desigualdade social, via arrocho salarial e concentração de riqueza. Na política,também contraditoriamente, combateu o comunismo sem defender a democracia e as instituições liberais e invocando o nacionalismo, permitiu a transferência dos esforços do financiamento público para setores privados (nacionais e internacionais).
Distinto é o contexto e os objetivos da recente onda autoritária. Desde a redemocratização, a CF de 1988 e o ciclo eleitoral pós 1989, o país experimentou o fortalecimento das instituições liberais e da dinâmica democrática. A imagem de que “as instituições funcionam” é parte do reconhecimento de regras e trâmites sólidos na relação sociedade-Estado. O período comportou também um expressivo alargamento democrático, via aumento dos controles sociais (democracia participativa, accountability), das políticas sociais (proteção, promoção e empoderamento social) e de novos direitos (difusos, coletivos, imateriais). Surgia uma democracia madura e qualificada, inédita na anterior trajetória brasileira.
O ciclo autoritário de 2016-2018 é reativo à essa democracia e seus resultados, abertamente defendendo sua destruição. Há um caminho ligando Temer à Bolsonaro na crescente potencialização da desdemocratização. O impeachment de 2016 inicia o processo de erosão institucional por sua natureza orquestrada e ardilosa, com um salto perigoso quando Temer inicia seu governo. Neste momento ocorre uma violação política importante: a traição do princípio de representação. Temer foi eleito em um pleito organizado em torno das disputas programáticas (Planos de Governo) e chegou ao governo como vice, enquanto representante de um projeto político vitorioso nas urnas. Sua legitimidade, em 2016 era a mesma de 2014, pois nos regimes democráticos não se votam em pessoas e sim em propostas políticas. Abriam-se as portas da desordem e da corrosão institucional., substituindo-se regras e princípios legitimadores por espertezas políticas.
No processo eleitoral de 2018 e ao longo do governo Bolsonaro essa corrosão avança com a instalação de uma gramática política irracional que misturava interesses privatistas, individualismo radical, valores, religião e senso-comum como bases da vida política. Esta linguagem política, do bolsonarismo ou nova direita, despreza o diálogo, a racionalidade, o interesse comum e o respeito pelo outro. Ao contrário, potencializa os afetos (de convergência difícil ou impossível), positiva a exclusão e defende a violência como ferramenta da política – o que nos leva a perguntar se, para este campo, a guerra não tomou o lugar da política.
São traços particulares desse novo ciclo autoritário a substituição do nacionalismo pela patriotada, a inexistência de um projeto econômico autossustentável e soberano (apenas a entrega de tudo e todos ao princípio do Mercado), a negação da função pública do Estado e, traço trágico, a transformação intencional de parcelas do povo brasileiro em “inimigo interno” (populações LGBTQIA+, indígena, pobre, mulheres, negros ou om orientação progressista). O autoritarismo recente move-se à perfeição na lógica competitiva e da guerra.
O exemplo cabal dessa narrativa baseada na glorificação da violência ocorreu no período eleitoral de 2022, nas manifestações pedindo a intervenção militar (golpe/ditadura) e que culminou na invasão e depredação da sede dos três poderes em Brasília (08/01/2023). Vê-se, com preocupação, a existência de uma cultura política enraizada em múltiplos segmentos sociais, resistentes à lógica do jogo democrático (vencedor é legítimo e governa), intolerantes, sem respeito à coisa pública e pautadas pela aversão à responsabilidade coletiva. Em 1964 a democracia foi inviabilizada em nome de um futuro coletivo, em uma perspectiva instrumental; em 2023 a nova direita sintetiza seu projeto de destruição da democracia sem objetivos futuros claros, sem imagem de pais, sem máscara em seu autoritarismo. Não se quer, de forma autoritária e excludente chegar em algum lugar. Ao contrário, o autoritarismo, a maximização do conflito, a guerra internalizada na vida social e o apagamento das instituições e direitos é o lugar onde se quer chegar.
*Vera Cepeda é docente do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar
Artigo publicado no Jornal ADUFSCar – edição 5 / Março 2023